Vai uma carona, aê?

Sabe como é que estudante pobre viaja? Se inscreve no Congresso, capricha no trabalho pra não correr o risco de ser reprovado e, depois de aceito, vai em busca dos recursos da universidade para conseguir, pelo menos, as passagens. Se não fosse assim, vocês acham que eu viajaria pra São Paulo aos 20 anos de idade? JAMAIS!
Há alguns anos, eu, Fabíola e Roberta tivemos um trabalho aceito na USP da capital. Fabíola e Roberta, bolsistas do CNPq, tiveram suas passagens totalmente custeadas, eu, já não mais bolsista, conseguira apenas a passagem de ida, com o pessoal do Centro de Humanidades. Na volta, teria que me virar. Minha mãe quase enlouqueceu me pedindo até pelamordeDeus pra não ir [Acho que foi exatamente nesse momento que ela me rogou a praga...e praga de mãe, já sabe, né? rsrs] , porque ela não teria como bancar minha passagem de volta. Mas eu não perderia a chance de conhecer São Paulo, muito menos de apresentar um trabalho na USP. 
Por sorte(?), fiquei sabendo que alguns alunos do CCT iriam no ônibus da universidade para um congresso na UFMG na mesma semana. E a teimosia venceu. Eu voltaria de Sampa até Minas de ônibus e pegaria uma carona com a galera das engenharias até Campina Grande. Pronto, resolvido!
Demos início então aos preparativos da viagem. Compramos uma caixa de isopor bemmmmmmmmm grande pra colocar lanche suficiente para a viagem de ida e não ter que gastar 4 vezes mais nas rodoviárias e pontos de parada. E tinha que ser um absurdo de lanche porque a viagem demoraria 3 dias. Compramos refrigerante, todinho, salgadinhos, biscoito recheado [tá explicado por que até hoje não gosto de biscoito recheado], fizemos sanduíche natural, bolo, torta salgada, etc. Éramos um tipo de "farofeiro" moderno. A caixa quase não coube à frente dos nossos bancos e ainda tivemos que viajar sem colocar os pés no chão ou apenas encostá-los na caixa, pois poderia quebrar nossa 'geladeira' de isopor.
E economizamos bastante com tal estratégia. A gorjeta no banheiro era magrinha e proporcional ao número de paradas até o destino. Pagar banho quente nem pensar, estava fora do nosso orçamento, ainda que estivéssemos no inverno.
Depois de uma eternidade, sem dormir, comer, ou me higienizar com decência, chegamos a São Paulo. Ao entrar na cidade, senti logo um pânico: se eu adoecesse, fosse atropelada ou me perdesse ali, quem me socorreria? Nunca tinha conhecido lugar tão grandioso, nunca tinha saído do nordeste e agora eu estava a 2.600 km de casa...
Recepcionadas pela família de Fabíola na rodoviária, fomos até à casa de sua tia. O frio era de doer nos ossos. Tomávamos uma garrafa de café por hora, lavávamos o banheiro com a ducha quente do chuveiro, dormíamos com umas três calças, cinco blusas, dois pares de meia e uns sete cobertores pesadíssimos; meu nariz não dava trégua pra coriza, e pra sair de casa, parecíamos uns escafandristas. E não era exagero, uma das noites que passamos lá, o termômetro marcou 6 graus, a mais fria do ano. Afora isso, fomos à Bienal de São Paulo, nos enfeitiçamos pela Avenida Paulista e conhecemos o MASP.
Um dia antes da apresentação do meu trabalho fomos à USP, pra ensaiar e cronometrar o tempo de trajeto. Somado tempo de metrô e coletivo: 4 horas! Nem preciso dizer quantos micos pagamos pelo caminho...no metrô, esperávamos abrir a porta que não abria naquela estação, até que o metrô voltava a se movimentar e nós tínhamos que parar na próxima e voltar caminhando; já na USP, pegamos o coletivo interno, só porque era GRATUITO, pra dar a volta na universidade e acabamos por descer antes do ponto inicial de tão entediada que ficamos em ver prédios, blocos, departamentos e praças...a USP é uma cidade! No momento de sair da universidade, com o dinheiro contado para a volta pra casa, gastamos parte de nossa economia no coletivo que estava chegando e não saindo da universidade e, sendo o cobrador um nordestino, contamos nosso drama de vida a ponto de quase brotarem lágrimas de sangue dos olhos até que, na clandestinidade, ele nos colocou de volta no ônibus de saída da universidade. 
No dia da apresentação, apesar do ensaio do dia anterior, chegamos em cima da hora e eu tive que correr feito uma queniana pra não chegar atrasada no evento. Fabíola e Roberta contam que foi uma das cenas mais engraçadas que elas já viram. Disse que meus pés batiam na bunda de tanto que eu corria. :P
Apresentado o trabalho, voltamos pra casa e no dia seguinte, dia da apresentação das meninas, eu já levaria minha bagagem pra universidade, pois iria de lá pra rodoviária e depois para Minas, na companhia do meu orientador. Sendo eu a guia interina, pedi às meninas que decorassem o caminho de volta, pois eu já não estaria com elas.
Na viagem pra Minas, ônibus com poltrona-cama de couro e eu com um espírito de pobre que me é peculiar, não preguei o olho. Minha genteeeeeee, eu durmo em todo e qualquer lugar, só não durmo em pé porque tenho medo de estabacar no chão e nessa viagem não consegui dormir numa poltrona de couro!!! Né lasca?
Já em Belo Horizonte, presenciamos um assalto no coletivo vizinho, às 6 da manhã. Ao chegar à UFMG, reconheci um rosto familiar logo no portão de entrada, mas continuei a caminhada. E qual não foi a minha surpresa ao chegar no pátio dos ônibus do congresso? Amarguei, pela primeira vez, uma praga de mãe. O local estava completamente vazio, isso mesmo, não havia um ônibus sequer, a galera de Campina tinha ido embora e tinha me deixado. Sabe aquela expressão 'sentei e chorei'? Pois é, tive vontade de sentar e chorar, só isso! Meu professor me ofereceu o dinheiro pra voltar de ônibus, ou seja, 250 reais, mas não aceitei porque não teria nem previsão de pagá-lo. Quanto ao rosto familiar na entrada da UFMG, reencontrei-o na volta e percebi que era Danilo, um aluno de Engenharia Química, também esquecido pela galera do congresso. Danilo estava com um colchão de solteiro nas mãos e me fez uma proposta pra lá de maluca: voltar de carona pra Campina Grande. No desespero, aceitei. Meu professor quase teve um infarto, tentou de todas as formas me convencer do contrário, mas não teve jeito. Vendemos o colchão de Danilo pra aumentar a renda e seguimos viagem. A caneta do congresso serviu pra riscar no papelão o nome da próxima cidade e a bolsa de viagem de banquinho de descanso. Nem vou me alongar aqui em todos os perrengues que passamos nessa loucura. Dormimos em 'buléia' de caminhão, em cima de caixas de hidrômetro em caminhão baú; viajamos com caminhoneiro obeso que gostava de música japonesa, bem no estilo serial killer; tivemos os lanches e as refeições pagas pelos caminhoneiros sensibilizados por nossa história digna de pena...
Dentre caminhão, carro pequeno e caminhonete, foram sete ou oito caronas e cinco dias de viagem. Durante todo esse tempo, ligava pra mainha dizendo que o ônibus da universidade tinha quebrado e estava parado na oficina, o que justificava tamanha demora. Como eu tinha sido teimosa em ir, achava que tinha o dever de arcar com as consequências da minha decisão. Queria resolver sozinha um problema que eu mesma tinha criado.       
Chegando em Feira de Santana, o caminhoneiro nos contou do assassinato de uma garota que pegou carona uma hora antes de nós, na mesma cidade, no dia anterior...Foi o suficiente para descermos do caminhão. E então, no auge do nosso desespero, sugeri à Danilo que fôssemos à Secretaria de Assistência Social e contássemos nossa história afim de conseguir, pelo menos, as passagens até Campina. Conseguimos uma passagem para cada no valor de dez rais, o que nos permitiria chegar, no máximo, à cidade vizinha. Algumas diaristas e domésticas que ali se encontravam pra fazer cadastro de emprego, ouviram nossa ladainha e nos contribuíram com dez reais, ou seja, o mesmo valor doado pela Assistência Social. Pronto, foi o suficiente pra eu me desmanchar em lágrimas.

E seguimos viagem. Chegamos em Juazeiro da Bahia sem condições de continuar: não tínhamos sequer cinco reais no bolso. Tentamos comprar passagem no cartão, mas como o ônibus só passaria 2:30 da madrugada e a funcionária não queria ficar acordada até essa hora pra nos despachar, inventou um desculpa pra lá de esfarrapada. E agora, o que seria de nós? Pensamos até em dormir num banco da rodoviária, até que Danilo se lembrou de um colega de Juazeiro e ligou na tentativa de conseguirmos abrigo. Como desgraça pouca pra pobre é bobagem, o amigo estava no cinema em Campina com a namorada. Ainda assim, a vozinha dele, além de pagar nosso taxi, nos recebeu quase onze horas da noite, nos deu comida, banho quente e uma cama cheirosinha. Meu Deusssssss, eu nunca reconheci tanto o valor das coisas simples da vida! Lembro que nesse paraíso ainda tinha um cd player e um disco de Djavan pra embalar meus sonhos. No outro dia, recarregadas as energias, compramos a passagem direto pra Campina Grande.

Ao colocar os pés em casa, já segura, contei toda a história aos meus irmãos e liguei pra mainha, contando toda a verdade. 
Sei do imenso risco que corri e jamais repetiria essa loucura. Tudo por causa desse meu orgulho, às vezes insano, em assumir a todo custo a responsabilidade das minhas atitudes! 
Lembra da volta pra casa lá em São Paulo de Fabíola e Roberta? O que era previsto aconteceu: elas se perderam tarde da noite, Roberta teve uma crise de asma e Fabíola, desesperada, batia em suas costas, como se a coitada tivesse entalada, até que se lembraram que eu anotei o número da casa da tia de Fá no material do congresso e um filho de Deus apareceu para resgatá-las!
Eita certificado sofrido!