Felicidade em (nós) ou nas (pessoas, coisas)?

Tive uma infância feliz! E costumava atribuir tal felicidade à conjuntura
daquela fase: tinha pai e mãe morando sob o mesmo teto e três irmãos mais velhos sensacionais. Quando nasci, já não havia a difícil situação financeira dentro de casa e meu pai já tinha vencido o alcoolismo. Fui privilegiada: 'quando me entendi por gente', já morávamos em casa própria, com uma família nos moldes tradicionais, estudava em colégio particular, meus pais podiam comprar todos os lançamentos da Xuxa e nossas tias traziam da capital brinquedos caríssimos e os livros que me seduziram às letras desde a infância. 
Somado a isso, três irmãos que pintavam e bordavam e eu aproveitava o ensejo. Tínhamos um quintal enorme, onde cansávamos de brincar e de brigar; montávamos parque e circo com toda a logística estruturada (os convidados tinham de pagar entrada com o dinheiro 'embalagem de cigarro', uma banca de jogos de azar era administrada por George, César cuidava do picadeiro e eu...bom, nem me lembro mais o meu papel, acho que era dar trabalho mesmo por ser tão miudinha). César confeccionava os brinquedos [preferi colocar as imagens porque nem sei se esses brinquedos têm nomes específicos]. Mas de todos o meu preferido era o carrinho de rolimã.
Riscávamos a calçada do Bom Preço até altas horas da noite... Coitados dos donos, uns amores, quando não era isso, fazíamos do interior do supermercado nossa pista de patinação por causa do piso lisinho e os prejuízos eram os mais diversos, George corria por cima da cobertura de metal como se fosse um homem aranha... Certa vez chegamos a furar as paredes sem reboco pelo nosso lado do quintal ao tentar fazer carinhas nas paredes. 
Também brincávamos na rua: de futebol, de bandeirinha, de pular corda e elástico, de jogar pião e gude, de esconde-esconde, de polícia e ladrão, de baleado, montávamos banda de música e as panelas, tampas e baldes das nossas casas viravam a bateria de Mantena... Particularmente, ainda brinquei muito na casa dos pais de Myrian. Havia um quintal gigantesco lá, com muitas árvores frutíferas, carros e coisas velhas prontos para serem usados nas brincadeiras. 
A casa de vovó Celina ou era o lugar das gostosuras ou do terror. De gostosura porque ela fazia a melhor comida do mundo e podíamos arrancar seriguelas, ainda que levássemos bronca por quebrar as telhas e sujar todo o quintal. De terror porque vovó aplicava injeção e não sei quem foi o infeliz dos quatro que teve crise de garganta primeiro e mainha mandou todos pra fazer tratamento com benzetacil, só pra garantir. rs
Se faltasse energia em João Dourado era aquela festa: corríamos pra fazer as lanternas com latas de óleo. Se algum passarinho morria na caixa d'água, sabíamos que naquele dia tinha piscina. Dias de chuva, então, era o sonho de todos os guris da cidade. E isso é apenas o que eu, a mais nova, consigo me lembrar. Tudo atestado nas inúmeras cicatrizes do meu corpo, no de Daniela e de George. [Daniela quase perdeu metade da língua na beliche, George então é mais costurado que a boneca Emília rs]    
E quando essas possibilidades não nos enchia mais os olhos, íamos para a Fazenda de vovô
Arnóbio e vovó Antoninha, onde podíamos fazer piquenique, andar a cavalo, de carroça, pescar no tanque de pedra, tirar leite de vaca, tomar banho de reservatório, fazer guerra de lama, pegar jabuticaba e umbu no pé. Vovô Arnóbio, que era um pouco de tudo, era também marceneiro e fazia o que a gente imaginasse de madeira.[Vou nem me estender aqui sobre o jeito amoroso de Daniela de curar todos os animais machucados da fazenda, do enterro de passarinho que ela nos obrigou a participar e dos gatos que ela sapecou num pneu de trator ao tentar protegê-los do sereno da noite rs]. Ainda tinha as viagens pra roça do Norte, na época de colheita do feijão. Como coincidia com as férias escolares, passávamos semanas 'garimpando' o feijão dos tios, dormindo nos ranchos e aprontando todas, lógico!  

Tive uma adolescência feliz! A essa altura, já morávamos em Irecê. Não lembro de nenhuma crise de identidade. Nossa turminha gostava de música, de ficar até altas horas da madrugada conversando nas calçadas ou tocando violão. Meu primeiro amor teve um início desastroso mas depois se ajustou. Namorei muito, fiquei muito, me apaixonei umas mil vezes, sofri umas novicentas, curti muito e conheci minhas verdadeiras e fiéis amigas 
Tenho uma vida adulta feliz! No início dela já morava em Campina Grande, fazia o curso de Letras, pelo qual me apaixonei perdidamente, e desse mesmo jeito, me apaixonei pelo grande amor da minha vida. A fase adulta também me trouxe as maiores dores: perdi minha amiga Aline, de acidente de carro e depois meu irmão da mesma forma, perdi meu avô Arnóbio, minha avó Celina e nosso querido Gu. Presenciei, sofridamente, um crise conjugal dos meus pais e alguns eventos traumáticos de violência em Campina Grande 
Casei com meu grande amor, como ele mesmo diz 'Tive o privilégio de casar com o grande amor de minha vida', com o conforto de morar numa casa própria quitada, com uma vida financeira confortável e realizando um dos meus maiores sonhos: o doutorado! Ainda estou em êxtase com esse fato.
Outro dia estive refletindo justamente sobre isso: será que o meu sentimento de felicidade, de realização é justificado por tudo isso ou ele faz parte de mim, independente das circunstâncias? Questiono isso porque conheço pessoas que são infelizes pelos mais diversos motivos: não estão felizes com o curso ou com a profissão que escolheram, com o relacionamento amoroso, o formato de vida, apesar do conforto financeiro, com as perdas que tiveram ou simplesmente com o corpo que tem. 
Apesar dos sofrimentos que passei e das dificuldades que enfrento, a exemplo do meu problema de endometriose, não seria muita coincidência uma única pessoa ter tido uma infância feliz, uma adolescência feliz, se realizar profissional e amorosamente? É por isso que acredito que a felicidade não está nas pessoas e nas coisas e sim dentro de mim, o que talvez acabe afastando naturalmente as pessoas negativas e atraindo as positivas.
Ainda sobre essas pessoas aparentemente infelizes, até mudei um pouco minha postura em relação às pessoas prepotentes, por exemplo. Antes me enojava ver alguns 'vomitando' arrogância sobre o que sabem ou o que possuem. Hoje olho pra elas e vejo pessoas inseguras que têm a necessidade de provar para si e para os outros que ela é importante de alguma forma. No passado, eu até seria capaz de entrar em debate para questionar todo esse marketing. Hoje não mais... vai que essa pessoa se agarra a esse 'saber' ou a esse 'ter' como a razão maior de sua felicidade. Quão cruel eu seria ao questionar essa ilusão? Seguindo a mesma lógica, penso sobre os excessos de amor em determinados relacionamentos nas redes sociais. Por experiência própria, compreendi que quanto mais consistente o relacionamento, menos provas públicas ele necessita. A meu ver, as sucessivas fotos felizes, depoimentos e declarações, ironicamente, dizem exatamente o contrário do que se pretendia: que o relacionamento vai mal por algum motivo ou pela existência de uma terceira pessoa, a quem se quer mandar 'o recado' pela rede social.
E do alto da minha ignorância sobre os sentimentos humanos, vou fazendo minhas especulações sobre felicidade, torcendo para que eu esteja certa em meus devaneios. Não serei hipócrita em dizer que a minha vida cheia de saúde, sem maiores traumas, em meio a um ambiente familiar de muito amor e uma vida financeira confortável não tem relação direta com a minha felicidade. Minha fé em Deus, minha fé na vida e meu otimismo incansável também contribuem significativamente na composição desse sentimento. Acontece que algumas pessoas infelizes que conheço também tiveram tais condições favoráveis e, por alguma razão, às vezes até por um motivo banal, não se sentem realizadas/felizes, o que me leva a crer no meu incômodo clichê de que a felicidade está em nós e não nas pessoas, nas conquistas ou nos bens materiais.